Postado em 07.12.2010
Por Amilcar Zanelatto.
Na semana passada estive no centro de São Paulo a trabalho e, na volta, utilizei o metrô.
Na estação da Sé, uma aglomeração de pessoas visivelmente estressadas disputava espaço na plataforma pelo direito de se espremer dentro dos vagões e ser transportada a seu destino feito frangos de granja.
|
Google image. |
Mas não foi o volume de pessoas em espaço pequeno que me chamou atenção: foi um enorme “bunner” publicitário pendurado no teto da estação e estrategicamente exposto no vão entre as plataformas. Tratava-se de propaganda de um antiácido contra dores e mal-estar estomacais. Desnecessário ser publicitário para compreender a conveniência de se fazer propaganda de um antiácido em um local onde as pessoas estão bastante estressadas, não?
O estresse provoca, dentre outras coisas, desconforto estomacal.
Então, pensei: se os sucessivos governos tivessem se preocupado em adotar políticas eficazes para o transporte público, será que o fabricante de antiácido faria a propaganda de seu produto ali?
Será que a indústria farmacêutica, que apoiou financeiramente tantas campanhas eleitorais, ficaria satisfeita se o governo eleito com sua contribuição criasse políticas públicas realmente eficientes para o setor?
Se houvesse um estudo preciso e detalhado que permitisse um planejamento de curto, médio e longo prazo que resultasse em uma solução definitiva para o transporte público?
Se parâmetros fossem revistos; paradigmas quebrados?
Digo isto porque aqui e em diversos países a ausência do Estado nas mais diversas esferas de sua responsabilidade acaba por produzir paradoxos como o descrito acima.
E a ausência do Estado em questões relacionadas à deficiência não somente produz paradoxos como também perpetuam equívocos.
A Europa do início do século passado passa por duas guerras devastadoras e boa parte de sua população foi vítima de traumas físicos e psicológicos. Surgem centros de reabilitação clínica para tratar de pessoas amputadas, paraplégicas, tetraplégicas e pessoas com deficiência sensorial. A questão da deficiência passa, então, a ser apropriada pela medicina.
No Brasil não é diferente. Em 1950 é criada a AACD e, como informa o sítio da Associação, “nasceu do sonho de um médico que queria criar no Brasil um centro de reabilitação com a mesma qualidade dos centros que conhecia no exterior, para tratar crianças e adolescentes com deficiências físicas e reinseri-los (sic) na sociedade.”
Sessenta anos depois de sua fundação, a Instituição ainda mantém como Missão “promover a prevenção, habilitação e reabilitação de pessoas com deficiência física, especialmente de crianças, adolescentes e jovens, favorecendo a integração social”. (*)
A AACD acaba se tornando, pela ausência do Estado, referência em tratamento; mas pelo modelo arcaico que adota, não é referência em Inclusão; papel que, por definição, é de atribuição do Estado.
Há a compreensão de que hajam pessoas com deficiência que necessitem de reabilitação clínica e que, por omissão do Estado, encontram excelência (e única alternativa) na Instituição.
Aqui verificaremos que a Instituição, por substituir serviços de responsabilidade do Estado, para continuar “viva” necessita que ele (o Estado) mantenha sua omissão e adote o discurso da Inclusão.
O Estado é omisso, entretanto não pode parecer omisso; a Instituição, por sua vez, precisa continuar “necessária”. Para continuar “necessária”, a Instituição precisa da manutenção de uma filosofia “integracionista” – garantida pela omissão do Estado - e de recursos financeiros.
Para garantir expansão e manutenção de seu domínio (são, hoje, sessenta anos acumulando conhecimento médico sobre inúmeros tipos de deficiência física), a AACD adota uma estratégia de “marketing” em que dissemina a sua Marca: cria o Teleton. E o que é o Teleton?
O sítio oficial da Instituição define:
“uma maratona televisiva que busca conscientizar (sic) a população a respeito das possibilidades de um deficiente físico gerando grande mobilização social. Além de prestar contas das atividades realizadas pela AACD, é uma das principais ferramentas de captação de recursos da instituição.”
Como vimos no texto anterior,
Censo Insensato, somente quando um Estado responsável apura com maior precisão a realidade social é que pode adotar modelo de gestão pública eficaz para promover equidade social.
Para tanto, é necessário que o Estado estabeleça parâmetros e paradigmas adequados. Necessário é se reconhecer protagonismos.
Os parâmetros e paradigmas adotados quanto à questão da deficiência estão ultrapassados. Alimentar Instituições assistencialistas e centralizadoras de conhecimento no máximo promove a integração (como admite a própria instituição).
A questão da deficiência deve ser observada como uma questão política, de Direitos Humanos. Integrar não é Incluir.
Na Integração, cabe à pessoa com deficiência superar os obstáculos que o meio lhe impõe. Na Inclusão, cabe ao Estado, à Sociedade, remover os obstáculos.
Em março de 2002 mais de 600 pessoas participaram, em Madrid, do Congresso Europeu sobre Deficiência. Surge a Declaração de Madrid, importante documento que se transforma em referencial às pessoas que lutam pela Inclusão.
No sítio da AACD, encontamos, além da Missão acima descrita, a seguinte Visão: “ser a opção preferencial em Reabilitação e Ortopedia para pacientes, médicos, profissionais da área, convênios e apoiadores, e ser reconhecida pelo seu elevado padrão de qualidade e eficácia, com transparência, responsabilidade social e sustentabilidade.”
A Declaração de Madrid traz:
1. A nossa visão pode ser mais bem descrita como sendo um contraste entre duas visões: a antiga dando lugar à nova:
a ) Antiga: pessoas com deficiência como objeto de caridade.
Nova: pessoas com deficiência como detentores de direitos.
b ) Antiga: pessoas com deficiência como pacientes.
Nova: pessoas com deficiência como cidadãos e consumidores com autonomia.
c ) Antiga: profissionais tomando decisões pelas pessoas com deficiência.
Nova: tomada de decisões e assunção de responsabilidades, com independência, por parte das pessoas com deficiência e suas organizações em assuntos que lhes dizem respeito.
d ) Antiga: enfoque apenas nas deficiências das pessoas.
Nova: promoção de ambientes acessíveis e de apoio e da eliminação de barreiras, revisão de culturas e de políticas e normas sociais.
e ) Antiga: rotulação de pessoas como dependentes ou não-empregáveis.
Nova: ênfase nas habilidades e na provisão de medidas efetivas de apoio.
f ) Antiga; projetar processos econômicos e sociais para poucos.
Nova: projetar um mundo flexível para muitos.
g ) Antiga: segregação desnecessária em educação, emprego e outras áreas da vida.
Nova: inserção de pessoas com deficiência na corrente principal da sociedade.
h ) Antiga: políticas sobre deficiência como uma questão que afeta apenas os órgãos especiais.
Nova: inserção de políticas sobre deficiência como uma responsabilidade geral do governo.
O
Teleton é a consubstanciação da visão antiga, porque a institucionalização da questão da deficiência é arcaica.
Vejamos:
a) o Teleton perpetua o olhar que a sociedade tem sobre a pessoa com deficiência: objeto de caridade;
b) o Teleton, como a própria instituição o define, é ferramenta de arrecadação para a mesma. E a pessoa com deficiência é, para a AACD, paciente, e a deficiência é reduzida à questão médica;
c) Com o Teleton, a instituição perpetua a visão antiga de que apenas profissionais da área de reabilitação clínica têm autoridade para promover inclusão;
d) O Teleton ajuda na perpetuação de estigmas e preconceitos, ao disseminar, inclusive, terminologia designativa ao segmento criada dentro da instituição;
e) O Teleton reafirma o conceito de dependência, de uma “vida mais feliz”, se e somente se a pessoa com deficiência aderir à instituição. Perpetua a equivocada visão de que ter uma deficiência é ser infeliz;
f) O Teleton, como instrumento de arrecadação, é também instrumento de discurso, uma vez que mantém a ideia de que uma deficiência é impeditiva de capacidade. Ao reabilitar clinicamente seu paciente mais apto, o integram e o apresentam como “herói da superação”;
g) O Teleton reforça o conceito antigo de que pessoas com deficiência devem ser segregadas para serem educadas. O pensamento das pessoas que adiram à institucionalização é de que devam haver escolas especiais para o segmento;
h) O Teleton, como instrumento arrecadatório, dá musculatura financeira à Instituição e essa passa a apoiar, dentro da Instituição Política, candidatos(as) que defendam seus interesses; como também são bastante atuantes em Conselhos.
Recentemente estava em uma pizzaria próxima a minha casa. Havia um casal de crianças brincando no salão e o menino se aproximou de mim e me abordou:
"Oi, quantos anos você tem?"
"Quarenta e nove. E você?"
"Seis. Você tem doença?"
"Não.... Por que pergunta?"
"Por que você tem esses bracinhos curtos... (apontando para meus braços)"
"(...)"
"Você não 'tava' no Silvio Santos?"
"Não...(...)"
Nesse instante, a menina (talvez sua irmãzinha) o chamou para continuar a brincar.
Fiquei olhando, impressionado, a criança de seis anos e a compreendi: não porque ela tinha seis anos, mas como um equívoco de pensamento pode ser perpetuado, fazendo com que uma criança de seis anos olhe uma diferença e a confunda com doença; e de onde saíra tal informação equivocada, qual a fonte e qual a consequência desse pensamento estreito quando perpetuado.
Fico muito mais impressionado quando observo ADULTOS, e mais, ADULTOS com deficiência, multiplicando esta ignomínia quando apoia esse tipo de evento.
Percebem, caros(as) leitores(as), que a institucionalização da questão da deficiência não promove a Inclusão?
Que é muito conveniente aos governos, mormente aos reprodutores e mantenedores dos interesses do Sistema, apoiar Instituições assistenciais em detrimento de criação de políticas públicas eficazes para promoção da Inclusão?
Para mim, o Teleton está para a AACD assim como o MacDiaFeliz está para o MacDonalds.
É sabido e amplamente denunciado que a rede de “fast food” MacDonalds – e similares – produz alimentos que podem causar sérios danos à saúde, inclusive câncer. As crianças são o principal alvo consumidor da rede.
Uma vez ao ano, a rede promove um evento “arrecadatório”, vendem milhões de alimentos considerados cancerígenos e parte (insigificante, diga-se) é “doado”.
"Doado" a quem?
Ao Hospital do Câncer!
“Ajudam” ao hospital a tratar de uma doença que seu próprio produto provoca!
E o que me chama a atenção nessa contradição?
É a adesão de pessoas com deficiência, que por motivo vário acabam se tornando públicas e, portanto, com exposição de mídia, tanto à campanha da AACD quanto à do MacDonalds!
Por que?
Talvez porque ainda não saibam diferenciar Integração de Inclusão.
Talvez porque ainda adotem o pensamento linear; não descobriram nem foram estimulados a compreenderem o mundo que o cercam sistemicamente.
Amílcar Zanelatto Fernandes
(*)
Os destaques em negrito itálico, assim como a expressão sic, entre parênteses, são de minha inteira responsabilidade.